sexta-feira, 14 de maio de 2010

MAGISTÉRIO INFALÍVEL DA IGREJA - I - III - 1 (Livro, Cap. e §)

... cerrada a vida terrestre do Redentor, como haveriam de perpetuar-se os raios de sua verdade destinada a iluminar a inteligência de todo o homem que vem a este mundo? Por que canal as ondas de vida divina que lhe brotam do peito como de fonte inexaurível chegariam a vivificar os corações? Quem haveria de conservar aceso o archote divino, incontaminado e puro o divino manancial? Cristo veio salvar todos os homens; os ecos de sua voz hão de ouvir-se em todos os pontos do globo e durar até ao fim dos tempos. Ainda uma vez: por que via se hão de comunicar à universalidade dos homens os tesouros de verdade e de vida de que ele é fonte perene?


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Livro I - A Igreja Católica
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Capítulo III - MAGISTÉRIO INFALÍVEL
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§ 1. - Magistério infalível da Igreja
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SUMÁRIO - A Igreja, prolongamento de Cristo na história. - Necessidade dum magistério infalível. - Insuficiência da Bíblia. A infalibilidade da Igreja no Evangelho; na consciência da cristandade. - Imutabilidade doutrinal do ensino católico. - Evolução do dogma?
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A Igreja é o prolongamento de Cristo na história. Milhares de anos haviam precedido a aparição do Redentor. Durante este longo e difícil período de preparação, Deus falara ao homem, em muitas ocasiões e de muitos modos, pelo órgão de seus profetas: "multifariam, multisque modis olim Deus loquens patribus en prophetis". Ad Habr., I, 1. Mas os seus ensinamentos confiados à guarda exclusiva de um pequeno povo num ângulo obscuro da terra não haviam irradiado a luz divina sobre o resto do do gênero humano, que acelerava a sua marcha para o abismo, envolto nas trevas da ignorância e do vício. Por último, enviou-nos Deus o seu Filho: Novissime, diebus istis, locutus est nobis in Filio. Ad Hebr., I, 2. Após uma longa aurora surge




o sol divino, que há de iluminar e vivificar a humanidade inteira. Foco de luz e de verdade, centro de vida e de amor, Cristo, Deus-homem, recolhe todos os raios do passado, concentra-os em si como em ponto de vivíssimo esplendor e projeta-os sobre as gerações futuras. "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". Língua humana nunca houvera podido pronunciar esta sentença divina. Em Cristo falava a Divindade revestida do manto de nossa natureza decaída. De seus lábios recebeu a família humana os tesouros da verdade, os germes da vida que a haviam de elevar à altura dos seus destinos sobrenaturais. Eis a missão de Cristo.

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Mas cerrada a vida terrestre do Redentor, como haveriam de perpetuar-se os raios de sua verdade destinada a iluminar a inteligência de todo o homem que vem a este mundo? Por que canal as ondas de vida divina que lhe brotam do peito como de fonte inexaurível chegariam a vivificar os corações? Quem haveria de conservar aceso o archote divino, incontaminado e puro o divino manancial? Cristo veio salvar todos os homens; os ecos de sua voz hão de ouvir-se em todos os pontos do globo e durar até ao fim dos tempos. Ainda uma vez: por que via se hão de comunicar à universalidade dos homens os tesouros de verdade e de vida de que ele é fonte perene?

Todas as obras divinas encontram-se na unidade fundamental de um plano harmonioso.

Na ordem natural, Deus comunica a vida ao homem por meio do homem, de geração em geração. De geração em geração, por meio do magistério vivo e oral transmite-se o patrimônio da verdade.

Criou Deus o universo com a onipotência de um fiat; mas conserva-o com uma ação incessante e universal, que se traduz por um sistema admirável de leis. Na origem dos seres, Deus é criador; no seu governo é Providência.

Na ordem sobrenatural, Cristo quis escolher também o homem como instrumento continuador de sua missão divina.

O sangue da vítima divina reatou no Calvário os laços de adoção filial partidos no Éden. Estava restebelecida a nova ordem sobrenatural. Era mister conservá-la, era mister, nesta ordem superior do espírito, um governo divino cujas leis lhe perpetuassem a existência e assegurassem o desenvolvimento e perfeição. A realidade há de corresponder a estas exigências misteriosas de harmonia no plano divino.

Durante a sua vida mortal, Cristo reúne em redor de si um punhado de homens, debasta-lhes a rudeza, aperfeiçoa-os, instrui-os em três anos de magistério, consagra-os sacerdotes, promete-lhes o seu espírito e finalmente, prestes a deixar a terra, confere-lhes uma grande investidura: "Todo o poder me foi dado no céu e na terra. Como o Pai me enviou, eu vos envio, ide e ensinai todos os povos". Estava fundada a Igreja: sociedade humana espiritual e visível dos filhos da Redenção.

Não basta. Órgão destinado a transmitir e perpetuar a obra do Homem-Deus, cumpria ainda investi-la de todos os caracteres

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que exigem a sua origem divina e a missão que lhe foi divinamente confiada.

Entre estes, antes de tudo, a infalibilidade doutrinal. Sujeita ao erro, a Igreja poderia no decorrer dos séculos adulterar o depósito da verdade a frustrar a ação iluminadora do Sol das almas. Em vez de atmosfera diáfana e cristalina que transmitisse aos espíritos os seus raios vivificadores, teríamos uma nuvem escura, espessa, opaca que interceptaria a comunicação entre as inteligências e o foco da luz eterna. Uma Igreja falível, de que nos serviria? É pura, é genuína a fonte da verdade e da vida, mas se o canal que me conduz as suas ondas pode contaminá-las de erro e de morte, a que pró instituí-lo? Se as suas águas rolando no tempo, pudessem carrear de mescla com a linfa divina da verdade, o lodo e a escória da ignorância e falibilidade humana, como poderia eu dessedentar seguramente minha sede de luz e de vida? Entre Cristo e as gerações futuras se levantaria de permeio o obstáculo intransponível de uma isntituição sujeita a todas as taras da fragilidade humana. Lá, de pé, imóvel, rebuçado nas sombras de um passado longínquo se ergueria a figura majestosa do Salvador, como pirâmide aureolada de esplendores celestes; cá, as gerações humanas que se sucedem ávidas de seus ensinamentos; de permeio, a separá-los um deserto árido, calcinado, impérvio, uma atmosfera baça e esbraseada a refranger os raios divinos em miragens enganadoras. Sem a Igreja infalível, Cristo passaria na história como um destes meteoros brilhantes que, por momentos inundam de claridade os abismos do espaço, mas não iluminam a longa rota do viajante perdido nas trevas que, dissipadas um instante, de novo se adensariam no seu caminho.


Sem metáfora: um dogma fixo exige necessariamente um infalibilidade para salvaguardá-lo1 Sem a promessa de uma assistência divina nenhum homem pode dizer a outro homem: tu hás de pensar e crer como eu.

- Mas, acode o protestantismo, esta certeza absoluta de atingir a doutrina genuína do Salvador, não nos falece, fora da Igreja. Temo-la na palavra divina consignada nos Evnagelhos. - E quem vos diz que os Evangelhos só ensinam a verdade sem mescla de erro? Fora da autoridade infalível da Igreja como discriminar os Evangelhos autênticos da multidão de apócrifos, que pulularam desde
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1. "Un dogme indisutable supose une Eglise infallibre". AUG. SABATIER, Esquisse d'une philosophie de la religion (8), àtros (sem data), p. 277.
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os primeiros tempos? E antes de existirem os livros não existia já a Igreja? Como receberam os primeiros fiéis a Boa Nova do Salvador? A Igreja não se fundou sobre os Evangelhos; os Evangelhos foram escritos para a Igreja e à sua guarda confiados.

Mas dou-vos que, sem a Igreja, estejais certos de possuir nos livros canônicos a pura palavra de Deus. Bastará? Não; é necessário interpretá-la autenticamente, apurar-lhe o sentido genuíno. Se empretais à frase inspirada uma significação diversa da que lhe deu o autor divino não credes na doutrina de Cristo, credes na vossa interpretação. E a interpretação dos homens é sempre falível.


Vede-os em ação. Que doutrina, que sistema resistiu aos assaltos intemperantes da inconstância humana? A história da humanidade é a história das variações de todas as idéias filosóficas, de todos os credos religiosos formulados por uma inteligência finita. Os princípios mais óbvios do senso comum foram postos em dúvida, as verdades mais fundamentais foram negadas; nada resiste às tempestades levantadas pelo ignorância e pelas paixões. Onde não há um centro de unidade, onde não há autoridade infalível, cada homem dá a sua opinião, cada sábio levanta a sua cátedra e funda a sua escola muitas vezes sem outro fim senão o de distinguir-se, de isolar-se e desunir. E quando uma doutrina é prática, quando os seus preceitos atingem a vida em todas as suas minifestalções, refreiam a cobiça, mortificam a sensualidade, humilham o orgulho, é geral a conjuração dos interesses feridos. Nenhuma verdade se defende então por si só.2 É mister montar-lhe ao lado uma sentinela vigilante e incorruptível que rechace os assaltos, que lhe defenda a existência, a integridade, a eficácia iluminadora. Uma tocha exposta às rajadas dos ventos apaga-se; colocai-a no alto de uma torre, abrigai-a num invólucro de cristal; é farol.
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2. Sobre esta impotência ingênita do livro para a regeneração espiritual da humanidade ouçam os protestantes estas considerações da sabedoria antiga. O testemunho não pode ser suspeito de parcialidade; é PLATÃO quem fala: "A palavra está para a escritura como um homem para seu retrato. As produções da pintura apresentam-se aos nossos olhos como vivas, mas se as interrogais guardam silêncio com dignidade... O mesmo fale da escritura que não sabe o que convém dizer a um e ocultar a outro. Se a impugnam ou insultam sem razão não se pode defender. Assim quem julga poder estabelecer só pela escritura uma doutrina clara e duradoura é um louco rematado (à letra: transborda de necessidade, polles an euntheias gemoi). Se realmente ele possuira os germes da verdade não houvera de crer que, com um pouco de líquido preto e uma pena podeira fazê-los germinar no universo, defendê-los contra as inclemências das estações, comunicar-lhes a necessária eficácia". PLATÃO, Phedro. Opera, Biponte, 1787, t. X. p. 381-2; Ed. de Lipsia 1819, 6. I, pp. 242-4.
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Nenhum legislador humano entrega as suas leis ao arbítrio da interpretação individual. Apesar de mais simples, mais concretas, mais sensíveis, as leis humanas não dispensam uma magistratura que as explique e proteja. Quem conceberia um fundador de república que, depois de lhe escrever a constituição, dissesse aos seus concidadãos: aí tendes o vosso pacto fundamental, lede-o interpretai-o a vosso modo e governai-vos por vós mesmos segundo os ditames de vossa jurisprudência individual? Que seria da união, da paz, da concórdia num país onde o poder legislativo fosse desacompanhado do judiciário, onde os códigos não fossem interpretados e defendidos pelos tribunais? Só a lei evangélica, com o seu caráter transcendente e misterioso, não precisaria de um tribunal que fosse centro de união, oráculo da verdade e santuário da justiça?

Impossível admiti-lo; e tal é a missão da Igreja. Divinamente assistida para repelir do tesouro da verdade qualquer mão sacrílega, ela mantém no seio da humanidade sempre aceso o farol da luz divina
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Negada a infalibilidade da Igreja é força multiplicar as infalibilidades em cada indivíduo que lê e interpreta o Evangelho. É o que parece fazer LUTERO: "A todos os cristãos e a cada um em particular incumbe conhecer e julgar a doutrina".3
À luz dos fatos, porém, como sustentar semelhante paradoxo?

Em presença de um mesmo texto LUTERO dá uma interpretação, CALVINO outra, MELANCHTHON outra ZWINGLIO outra, CARLOSTADT outra, BUCERO outra, uma os anglicanos, outra os quáquers, outra cada um das mil seitas protestantes.5 Serão todas infalíveis? Qual a verdadeira? Para chegarmos a esta babel religiosa teria Cristo confiado a sua palavra ao mundo? Não há, pois, evitar a exigência de uma autoridade infalível instituída ao lado do depósito divino, para
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3. Verdade tão evidente reconhecem hoje os mais sensatos dentre os próprios protestantes. "Uma Igreja cuja doutrina é susceptível de erro na sua essência, pode transviar e perder as almas. Igreja assim, que autoridade poderá exercer num espírito enamorado da verdade e torturado pela dúvida?... Negar a infalibilidade é negar a própria Igreja".KROCH-TONNING, Le protestantisme contemporaine, ruine constitucionelle, Paris, Bloud, 1901, p. 24. O autor é o mais abalizado teólogo moderno do luteranismo norueguês.

4. WEIMAR, X, 2, Abt. p. 217. Cfr. t. XI., p. 236.

5. Já em 1577, CRISTÓFORO RASPERGER, numa dissertação publicada em Ingolstadt recolhera duzentas interpretações diversas, propostas pelos inovadores, das palavras: hoc est corpus meum. E trata-se de um dogma fundamental, da instituição de um sacramento, da promulgação da lei sacrifical da Nova Aliança, do testamente de Cristo!

Mais adiante consagraremos um capítulo especial à análise da regra de fé estabelecida pelos protestantes.

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asseguar-lhe a integridade sobrenatural. De nada vale um livro infalível em mão de homens falíveis no interpretá-lo.6
Uma religião divina exige uma autoridade infalível? Cristo instituiu infalível a sua Igreja. Deus, que na ordem natural prodigalizou, com mãos largas, todos os dons necessários à conservação e desenvolvimento da nossa vida física - a terra que nos sustenta com os seus frutos, o ar que nos vivifica com o seu oxigênio, o sol que nos ilumina com os seus raios - não será menos generoso em liberalizar-nos, na ordem do espírito, o alimento necessário à nossa vida sobrenatural. O divino Artista parece-se consigo mesmo em todas as suas obras.


Ao Evangelho: "Ide, amestrai a todos os povos, batizando-os em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que o que vos mandei; eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos", Math., XXVII, 19,20.

Os apóstolos e os seus continuadores devem evangelizar todos os povos, devem ensinar-lhes tudo o que Cristo ensinou, omnia. E como esta fora empresa superior a simples forças humanas, o Salvador promete-lhes o seu auxílio, a sua assistência divina: Cristo estará com a sua Igreja não só nos seus primórdios, não só enquanto viverem os doze escolhidos da Galiléia, mas sempre, todos os dias até à consumação dos séculos. Poderá háver promessa mais formal, mais explícita, mais inequívoca? Poderá crer-se que um magistério
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6. Dos perigos da interpretação inividual da Escritura traçou-nos um quadro eloquente o célebre pastor protestante VINET: "La parole de Dieu ne peut sans doute avoir qu'un sens en elle-même; mais elle en aura mille dans l'esprit du lecteur... On ne cherche pas en effet dans la Bible toute la vérité, mais la vérité qui agrée et qui flatte: chacun se jette sur sa proie; riche et splendide proie, car même les vérités partielles ont dans la Bible une beauté qui en ferait de belles erreurs et l'autorité du livre leur donne une consécration imposante. On abonde dans le sens de la vérité qu'on a choisie; on exclut ou l'on néglige celles qui la complètent en lui faisant contrepoids; on ne voit dans la Biblie que ce qu'on veut; en sorte que, dans le fait, chacun a sa Bible, soutient en son nom et dire de son texte les erreurs les plus antibibliques; en sorte que les caractères, les inclinations, les hommes qui diffèrent entre eux le plus profondément, se réclament tous ensemble de la Bible et que le même étendart flotte sur deux armées rivales.
Celui-ci voit dans l'Evangile Dieu discendant jusq'à l'homme, l'homme élevé jusq'à Dieu par le mystère de la croix; d'autres y voient l1homme auteur de son propre salut par l'accomplissement d'une morale pure; pour d'autres encore, le christianisme n'est qu'une cotrene sociale ou la forme transitoire d'une révélation qui se continue, ou la philosophie du genre humain se symbolisant dans une vie ou dans une morte réelles ou fictives: que sais-je? Tous les oiseaux de l'air, depuis l'oiseua de la nuit jusq'à l'aigle, ami du soleil, font leur nid dans les rameaux de cet arbre immense. On n'est d'accord que sur une chose: c'est de cherchez dnas la Biblie, non les idées de la Bible, mais la seule autorité irrecusabel pour les idées qu'on a, et qu'un nom d'homme ne protégerait pas assez. C'est ainsi qu'on se joue (et qui est-ce qui en est tout à fait innocent?) de l'unique sens de cette immuabre parole". A. VINET, L'Eglise et les confessions de foi, p. 29. Ap. AVG. NICOLAS, Etudes philosophiques sur le christinisme, t. III 26. Paris 1885, p. 247.
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divinamente assistido pela própria Verdade ensine o erro?7 "Como o Pai me enviou, assim eu vos envio".8 A Igreja é, pois, a continuação de Cristo na história, é o prolongamento da missão e do magistério que lhe confiou o Padre. Poderá conceber-se que a autoridade continuadora dos ensinamentos daquele que não engana nem se engana devie as gerações do caminho da verdade e da salvação?

"Eu rogarei ao Padre e ele vos mandará o Espírito consolador que ficará convosco eternamente. É o Espírito de verdade, que vos ensinará toda a verdade... O Espírito Santo consolador que vos há de enviar o Pai em meu nome vos ensinará todas as coisas, e vos há de sugerir tudo o que eu vos ensinei".8a Não haveria contradição blasfema em pensar que o Espírito de amor e de verdade prometido para ensinar à Igreja toda a verdade fosse infiel à sua missão?

E poderia Cristo não prometer esta infalibilidade de sua assistência? Não o deveria ele à sua santidade, à sua justiça, quando impôs ao mundo, sob pena de eterna condenação, a fé nas verdades pregadas pelos seus enviados? "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura. Quem crer e for batizado, será salvo; quem não crer será condenado", Marc. XVI, 15-16.

O Assentimento da fé, que de nós exige o Salvador, é firme, absoluto, irrevogável. Pela fé devemos estar dispostos a verter até a última gota do nosso sangue. Ora, fora possível esta firmeza inconcussa de convicções se pudéramos um só instante suspeitar apossibilidade de erro na Igreja? For concebível esta certeza máxima sobre verdades que muitas vezes transcendem as forças natuais da razão, se máxima também não fora a certeza de que a Igreja não se pode enganar e é indubitavelmente divina a doutrina que ela propõe à adesão dos crentes? No dia em que no nosso espírito despontasse a menor sombra de dúbida sobre a fidelidade da Igreja ao seu mandato, todo o nosso edifício espiritual desabaria
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7. Observa CARLOS PEREIRA: "Isto garante a imperecibilidade da Igreja, ou mesmo, se o quiserem, a sua infalibilidade, sem garantir, entretanto, a infalibilidade doutrinária de qualquer indivíduo ou corporação eclesiástica", p. 345; - Poderia o ilustre gramático exprimir-se com mais clareza e dizer-nos explicitamente em que consiste afinal o divino privilégio que não reside em nenhum indivíduo e em nenhuma corporação? A infalibilidade prometida por Cristo seria algo parecido com uma quimera a esvoaçar pelos espaços imaginários.

8. Joan., XX, 21.

8a. Joan., XIV, 16-17; XVI, 13; XIV, 26.
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em ruínas. Cortando-nos os nervos da vontade, a incerteza jarretearia todas as energias da ação.

Não só. O ato de fé, base da vida divina e sobrenatural das nossas almas, deixaria de ser um ato eminentemente racional. Dizer: "Senhor, creio tudo o que revelastes e que nos propõe a vossa Igreja, por vós constituída depositária de vossos ensinamentos; por esta fé, estou disposto a dar a minha vida", sem a certeza absoluta de que a Igreja é infalível fora a mais rematada insensatez. Não; Cristo não poderia impor-nos um ato contrário às exigências fundamentais, à dignidade inauferível de nossa natureza. Cristo não pode ser cúmplice da superstição e do erro. Se aos apóstolos confiou a missão de pregar o seu Evangelho, se aos homens impôs o dever de lhes prestar fé incondicionada sob pena de perder a eterna felicidade, imunizou-os necessariamente do erro, revestiu-os de indubitável infalibilidade.


E a Igreja desde o seu berço teve consciência deste divino privilégio. No frontispício de suas primeiras leis lemos esta afirmação divinamente ousada: "Pareceu ao Espírito Santo e a nós".9

Para S. Paulo a Igreja é a "coluna e o firmamento da verdade".10 Vai além o apóstolo: "Se um anjo vos pregar um Evangelho diverso do que vos ensinamos, seja anátema".11

Desapareceram os apóstolos; a consciência da Igreja na sua infalibilidade não vacilou. Como no oceano existem ilhas ubertosas, rendilhadas de portos que oferecem abrigo seguro aos náufragos, assim, diz TEÓFILO DE ANTIOQUIA, instituiu Deus, no proceloso mar do mundo, a Igreja, como ilha e porto seguro, onde de conserva a doutrina da verdade para os que nela se refugiam em busca de salvação.12 "Onde está a Igreja, afirma IRINEU, aí está o Espírito de salvação.12 "Onde está a Igreja, afirma IRINEU, aí está o Espírito de Deus e o Espírito de Deus é verdade".13 No firmamento da natureza, compara ORÍGENES, acendeu o Senhor dois grandes luminares. Também nós temos dois grandes luzeiros: Cristo e a sua Igreja aclara todos os que vagueiam na noite da ignorância.14 "Por isso, diz textualmente alhures o grande doutor alexandrino,
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9. Act., XV, 28.

10. 1 Tim., III, 15.

11. Gal. II, 8.

12. Ad Autolye., I. 2, n. 14 (MG, VI, 1076).

13. Adv. Haeres., III, 24 (MG, VII 966).

14. Hom. I in Genes., n. 58,7 (MG, XII, 150 segs.).
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não devemos prestar ouvidos a quantos nos dizem: eis o Cristo e não no-lo mostram na Igreja".15 Para CIPRIANO a Igreja é a esposa de Cristo, que não se pode macular com o adultério: incorrupta e pudica".16
Mas por que multiplicar testemunhos? Onde e quando hesitou uma só vez a Igreja na sua divina infalibilidade? Quando deixou ela, pelo órgão dos seus Papas e concílios, de fulminar anátemas contra quem quer atentasse violar a integridade do matrimônio confiado à sua incorruptível vigilância?

E já não é uma prova de sua excepcional prerrogativa essa afirmação de infalibilidade imperturbavelmente tranquila e ininturruptamente continuada através de 20 séculos?

Notável singularidade! Nenhuma religião, por mais presumida de suas origens divinas, nenhuma seita, por mais arrogante na audácia de suas afirmações, levou a ousadia ao extremos de dizer-se infalível. LUTERO e CALVINO revoltam-se, impõem à viva força as suas doutrinas, perseguem os seus contraditores, mas não pensam em apregoar o dogma da própria infalibilidade. ARISTÓTELES, PLATÃO e CÍCERO não conheceram essa palavra divina. A infalibilidade é uma carga mui pesada para ombros humanos. Tão alto proclama a consciência as deficiências do nosso espírito, que o mais desmesurado orgulho ainda não ousou pô-las em dúvida. As incoerências dos gênios mais privilegiados, o contínuo renovar-se dos sistemas filosóficos as viariações dos credos de todas as seitas aí estão, inexoráveis, a atestar a falibilidade ingênita do espírito humano. O fátuo, que, esquecido desta mobilidade das nossas construções intelectuais se levantasse um dia entre os seus semelhantes, proclamando-se infalível, seria acolhido com riso universal. Há 20 séculos que a Igreja afirma a sua infalibilidade e o gênero humano não ri.

E 20 séculos de imutabilidade doutrinal ratificam a verdade sobre-humana de sua afirmação.17 A filosofia, a ciência, o direito
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15. In Math., comment, series, n. 47 (MG, XIII, 1669). Este texto cortado de encomenda para os protestantes.

16. De Unit. Eccles., c. 6 (HARTEL, 214).

17. Este fato da imutabilidade doutrinal da Igreja, cuja evidência cresce com a profundidade e vastidão das modernas investigações históricas, impõe-se aos seus mais irredutíveis adversários que se não deixam de todo cegar pelo preconceito sectário. Lembremos o já citado historiador inglês GIBBON que escrevia há mais de um século: "Foi-me impossível resistir ao peso da evidência histórica que mostra como em todo o período dos quatro primeiros séculos da Igreja já eram admitidos, em teoria e em prática, os pontos principais das doutrinas do Papado". E. GIBBON, Memoirs of my life and writings na Miscellaneous Works of E. Gibbon, London, 1887, pp. 28-9
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têm uma história de variações, correções e contradições. Só a Igreja não variou nunca, nunca se corrigiu, nunca se contradisse. Não há uma só linha do seu Símbolo riscada, não há um só artigo de fé desconfessado, não há um só dogma, que tenha empalidecido com o tempo. O que ela ensinou nas catacumbas repete-o em nossos púlpitos. Em face da incredulidade moderna armada de ciência e de crítica, ela afirma desassombradamente o que pregava outrora à fé viva das primeiras gerações. Nos templos das grandes metrópoles, da nossa civilização, ecoa o mesmo credo que o selvagem, na pobreza de sua arribana, aprende dos lábios humildes do missionário. S. AMBRÓSIO poderia repetir sob o majestoso Domo da moderna Milão as magníficas homílias pregadas aos seus diocesanos do séc. IV. Sobre a presença real de Cristo na Eucaristia, ou as grandezas da maternidade divina de Maria. S. CRISÓSTOMO e S. CIRILO excitariam, sob a imensidade da cúpula de Miguel Ângelo e na presença do Papa, dos Cardeais e dos fiéis de hoje, o mesmo frêmito de entusiasmo que outrora entre os cristãos de Antioquia ou de Êfeso.

E a Igreja não é uma pessoa, não é um indivíduo isolado no qual uma obstinação orgulhosa poderia explicar a imobilidade doutrinal. A Igreja são 20 séculos de gerações humanas, são legiões de povos diferentes de raça, de costumes e de cultura, sujeitos no tempo e no espaço a todas as causas de mudança. Fato singular! Imutabilidade divina! Explicai-a sem a infalibilidade.

Evolução do dogma? - O século XIX encantado da palavra tentou aplicá-la também ao dogma. Daí equívocos funestos que importa dissipar.

Evolvem os dogmas? Sim e não. Objetivamente, não; subjetivamente, sim. Explico-me.

Quando emudeceram, gelados pela morte, os lábios do último apóstolo, fechou-se o ciclo das revelações públicas. O período de inspiração estava concluído, inaugurava-se o período de assistência. No primeiro, acendeu-se o foco de luz, no segundo, conserva-se. Uma vez constituído o depósito divino, Deus confia-o à sua Igreja. Ela o guardará intacto e inviolável até o fim dos tempos. Nenhuma verdade há de perecer, nenhuma será acrescentada. Objetivamente, pois, não pode haver evolução, não pode haver progresso no dogma.

Subjetivamente, porém, nós podemos conhecê-lo com maior profundidade, explicá-lo com mais clareza, desenvolvê-lo em novas
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conclusões. A palavra divina é de inexaurível fucundidade. Quem ousará supor que uma só geração lhe tenha esgotado todos os tesouros? Os gênios depositam muitas vezes nas suas obras germes de verdades que só um futuro distante verá desabrochar e florir. Será menos rica, menos potente a palavra de Deus? Não há também de florescer e frutificar a semente divina confiada à Igreja? Vede com que amor, com que carinho respeitoso ela a cultiva! Vede como, sob a assistência do Espírito que nela reside, as causas mais encontradas concorrem admiravelmente para a expansão lógica das verdade reveladas!

São os gênios que, no desfilar dos séculos, sondam, com os olhos de águia, as profundezas dos ensinamentos divinos. Quantas harmonias não sentidas, quantos tesouros dantes ignorados, quantas belezas não advertidas não logrou descobrir a meditação profunda e afetuosa dos doutores, dos santos, dos teólogos!

São as mudadas condições da vida dos povos. Com o avançar do progresso, novas aspirações se manifestam, acentuam-se novas exigências. Em função das necessidades dos tempos a Igreja repensa as verdades que lhe foram confiadas e tira das suas riquezas novas soluções, novas luzes para iluminar o gênero humano em toda as fases de sua existência histórica e social.

São os erros, são as heresias. Descansavam os fiéis tranquilos na posse indisputada de sua fé. Surge um espírito tewmerário que, com a ousadia de suas negações, lança a perturbação nas almas. A Igreja consulta as fontes divinas da revelação, estuda-as, aprofunda-as e contra o erro que surge formula, define em termos precisos a doutrina impugnada.18 A definição criou um dogma? Não; defendou-o contra a dúvida, protegeu-o na consciência dos fiéis contra os perigos de uma interpretação falsa e equívoca. A definição é o sim eterno da verdade oposto ao não do erro que nasce.

No entretanto, os estudos suscitados pela controvérsia banham de desconhecidas claridades a verdade divina que por um instante a negação pretendera ofuscar. Um exemplo. Os primeiros criam explicitamente que Jesus era Filho de Deus e Filho de Maria. Nesta verdade, porém, quantas outras não se incluem que eles admitiam expressamente mas nem sempre formularam com
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18. "Ideo divina Providentia multos diversi erroris haereticos esse permittit, ut cum insultant nobis et interrogant nos ea quae nescimus vel sic excutiamus pigritiam nostram et divinas Scripturas nosse cupiamus." S AGPSTOMJP. De Gemeso c. Manichaeos, I. 1. c. 1., n. 2 (ML, 333IV0, 173.___________

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distinção! Vieram, porém, os gnósticos, vieram os arianos, os nestorianos, os eutiquianos, os monotelitas. Sob a urgência de dar uma resposta a suas multiplicadas negações, a fórmula fecunda foi meditada, analisada e dela jorrou imensa luz: explicitamente e distintamente a Igreja enuncia e define os dogmas da consubstancialidade do Filho, da verdadeira natureza humana de Cristo, da distinção das duas naturezas subsistentes na Pessoa do Verbo, da existência de duas vontades no Homem-Deus, etc., etc. Era uma semente fecunda, hoje é uma árvore que se ostenta em toda a pujança de seu desenvolvimento. Houve progresso, não houve mudança.

Estudo direto do dogma, progresso das ciências e da vida social, impugnação do erro e da heresia, tais são os principais fatores humanos de que se serve a divina Providência para promover na Igreja o conhecimento mais amplo, mais profundo, mais harmonioso do verdade revelada.

Colocai diante do firmamento estrelado um observador com a vista desarmada: é um espetáculo grandioso que o extasia. Dai-lhe agora um telescópio comum: como os astros se multiplicam, como se distinguem na viveza de seu fulgor! Imaginai-o agora armado de um destes proderosíssimos instrumentos, maravilhas da ótica e da mecânica moderna. Que vista deslumbrante! Quantos mundos, cuja existência nem sequer se suspeitava! Como das profundezas do espaço surgem miríades de astros desconhecidos! Dizei-me: mudou-se, porventura o firmamento, mudaram-se as estrelas? Não; cresceu a potência visual do observador. Assim no firmamento das verdades da Igreja. Em si, são sempre iguais e imutáveis os dogmas revelados; em nós, porém, com o volver dos anos, manifestam-se mais claros e mais distintos.

Nada, portanto tão simples como responder à pergunta inicial: evolvem os dogmas? Evolvem, isto é, aprofundam-se, precisam-se, definem-se, sim. Evolvem, ísto é, nascem, morrem, transmudam-se, crescem por justaposição de novos dogmas, não. O primeiro evolver é vida, é progresso na verdade; o segundo, é variação, incoerência, contradição.

Aos olhos do observador sincero e maravilhado oferece a Igreja o espetáculo singular do desenvolvimento da vida aliado à imutabilidade divina da verdade. E esta admirável imutabilidade do dogma católico outro coisa não é senão o comentário histórico da promessa de Cristo: Eu estarei convosco, todos os dias, até à conumação dos séculos.


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