quinta-feira, 24 de junho de 2010

A MULTIPLICAÇÃO DAS SEITAS - IRC/LCP II-III-2

... os agentes de divisão continuaram o seu trabalho dissolvente. No interior de cada uma destas grandes seções pulularam as seitas menores. Anabatistas, antinomistas, antitrinitrio, socinianos, latitudinários ou arminianos, gomaristas ou antilatitudinários, episcopalianos, presbiterianos, etc., etc.,, degladiavam-se em todos os países protestantes. Daí por diante cada século viu surgir dezenas de novas facções. Qualquer cabeça desequilibrada, fanática ou mística, que se sentia com vigor de rasgar novos horizontes religiosos à humanidade, reunia fiéis e fundava uma igreja. Atualmente o número de seitas protestantes desafia a mais paciente estatística. Avalie o leitor.


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Livro II 

São Pedro, Papa Imortal


CAPÍTULO III - CONSEQUÊNCIAS DO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO PROTESTANTISMO

§ 2. - Multiplicação das seitas.



SUMÁRIO - Desagregação sectária do protestantismo. - Prodígios de acrobacia intelectual em defesa de uma causa perdida: a "harmonia fundamental" do Sr. Carlos Pereira.

O primeiro sintoma de desequilíbrio orgânico de uma sociedade religiosa é a fragmentação em seitas. A diagnose histórica do protestantismo revela-lhe o aparecimento desde os primeiros dias de sua existência. Mal LUTERO congregara um manípulo de sequazes sob a sua bandeira, ZWINGLIO na Suiça, a rufo de caixa, tocava a reunir sob o estandarte que lhe conservava o nome e CALVINO em França recrutava outro exército irreconciliável com os dos seus irmãos em protestar. Inglaterra não quis jurar fé a nenhum dos grandes condottieri do continente. Com o britânico ecletismo fundiu, num amálgama indigesto, doutrinas católicas, luteranas e calvinistas e hasteou o pendão do anglicanismo. Anglicanismo, calvinismo, zwinglianismo e luteranismo - quatro nomes, quatro tendências, quatro partidos, que nenhum compromisso político, nenhuma habilidade diplomática conseguiu jamais caldear num todo coerente na sua unidade orgânica e doutrinal.

Pelo contrário, os agentes de divisão continuaram o seu trabalho dissolvente. No interior de cada uma destas grandes seções pulularam as seitas menores. Anabatistas, antinomistas, antitrinitrio, socinianos, latitudinários ou arminianos, gomaristas ou antilatitudinários, episcopalianos, presbiterianos, etc., etc.,, digladiavam-se em todos os países protestantes. Daí por diante cada século viu surgir dezenas de novas facções. Qualquer cabeça desequilibrada, fanática ou mística, que se sentia com vigor de rasgar novos horizontes religiosos à humanidade, reunia fiéis e fundava uma igreja. Atualmente o número de seitas protestantes desafia a mais paciente estatística. Avalie o leitor.

Na Alemanha registravam-se há poucos anos, 37 igrejas regionais (Landeskerchen) sem contar as "igrejas livres".



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Na Inglaterra o Whitaker's Almanac contava em 1895, 274 denominações religiosas. Só na cidade de Londres e arrebaldes há para cima de 100! Que Babel! E em cada seita as confissões de fé sucedem-se como as folhas numa árvore!

As famílias reproduzem em miniatura o estado da nação. Vede a de SPENCER: um espécie de museu religioso. Entre vivos e mortos, na genealogia do filósofo, havia huguenotes, hussitas, metodistas e anglicanos. O pai de Herbert era quaker, a mãe, metodista, um tio, anglicano, outro adepto da seita ascética de Cambridge. O futuro paladino do agnosticismo devia ter ouvido na sua juventude discussões teológicas em todas as solfas.

Aos outros países protestantes, porém levam a palma os Estados Unidos. Aí o governo não estende a sua sombra protetora a nenhuma "confissão" em particular.

Sob o sol comum da liberdade, a florescência sectária é de uma exuberância pasmosa. Os relatórios oficiais acusavam, não há muito, 56 seitas principais que, unidas às secundárias, perfazem belo total de 288. Os seus adeptos mudam de confissão religiosa como quem passa de uma sociedade comercial para outra que promete mais pingues dividendos. Já ninguém pensa numa igreja verdadeira. Às seitas que se vão formando cada dia chamam os americanos denominações evangélicas; o que já lhes caracteriza bem a natureza. Entre elas podeis contar adventistas, batistas regulares, batistas do sétimo dia, batistas de comunhão livre, batistas dos seis princípios  unitários, discípulos (campbelistas), metodistas, africanos, episcopais, metodistas livres, metodistas primitivos, ocidentais, metodistas independentes, morávios, mormônios, Nova Jerusalém, reformados, presbiterianos regulares, presbiterianos da velha escola, quakers, luteranos, espiritualistas, wesleyanos genuínos, etc., etc. Não há recear que a música enfade pela monotonia dos instrumentos; mas onde a harmonia que caracteriza a verdade?

Harmonia! Salta-nos pela proa a Sr. C. PEREIRA: o protestantismo a possui na sua unidade livre e fundamental. "O que se deve admirar no protestantismo não são as variedades denominacionais de sua vida histórica, mas a unidade fundamental dos credos de todas as numerosas agremiações evangélicas ortodoxas", p. 65.12
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12. Duas observações a propósito. Primeira. Se o frisar nos dogmas fundamentais não tolhe, no sentir de C. PEREIRA, às mil seitas protestantes o seu caráter cristão por que este empenho encanzinado em combater a Igreja católica? Não reconhece o nosso pastor que ela, "como parte integrante da cristandade professa em seu credo e em suas práticas todos os grandes dogmas e instituições do cristianismo"?, p. 396. Se é amor da verdade o móvel da propaganda protestante não seria mais louvável que o zelo dos seus bibliófilos itinerantes, em vez de se despender em injúrias e doestos contra o catolicismo, se empregasse em compor as desavenças de família? - A segunda observação é um conselho de segurança pessoal. Ao dizer dos próprios protestantes é possível salvar-se na Igreja romana que conserva todos os dogmas fundamentais. Segundo a doutrina católica, fora da verdadeira Igreja de Cristo não há salvação. Não é pois, de prudência elementar viver e morrer no seio do catolicismo: Se os nossos adversários não aceitarem o conselho, sejam ao menos coerentes com o seu princípio do livre exame. Deixem-nos a nós católicos na posse tranquila do que julgamos verdade infalível, e quanto a si, procedam como lhes ditar a consciência iluminada e sincera. Propaganda protestante é ilogismo.




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Nada mais interessante do que ver os prodígios de acrobacia intelectual do nosso gramático para defender uma causa irremediavelmente perdida. Vejamo-lo em ação.

Seu primeiro cavalo de batalha é a cansada distinção de JURIEU entre os dogmas fundamentais e dogmas não fundamentais... os artigos de fé em que eles concordam são mais numerosos do que os em que discordam", p. 71. - nem esta magra consolação é verdadeira; mas adiant. "É patente a harmonia fundamental dos credos ou confissões de fé", p.67. As várias denominações protestantes "constituem uma unidade moral pela harmonia fundamental de seus credos", p. 184.

Há, pois, que distinguir no cristianismo dogmas fundamentais e dogmas não fundamentais. Os protestantes divergem nestes e concordam naquele. Destarte salva-se a "harmonia fundamental" e a liberdade! Dois pombos de uma chumbada. Milagreira distinção!

Examinemo-la de perto, começando, como é de razão, pela Bíblia. Em que passo de Escritura leu o Sr. C. PEREIRA que há dogmas que se devem crer e dogmas que se podem impunemente negar? E no entanto que verdade mais importante que esta? Que dogma haverá mais fundamental que o fundamento dos dogmas fundamentais? Em resposta, a Bíblia "única regra de fé" emudece! Jesus Cristo e os apóstolos falam-nos em mil lugares da unidade de fé sem distinção de espécie alguma, relativa à liberdade de crer. "Ensinais tudo que eu vos mandei", Math., XXVIII, 20; "quem crer será salvo, quem não crer será condenado", Marc., XVI, 16. "Se um anjo do céu vos evangelizar o que não vos evangelizamos, seja anátema", Gal., I, 8; "sede solícitos em conservar a unidade de espírito no vínculo da paz, um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus". Ephes., IV, 8-6. Aqui a unidade de fé é posta no mesmo plano das



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unidades indivisíveis do batismo e da divindade. Ao Coríntios: "peço-vos, irmãos, em nome de N. S. J. C., que digais todos a mesma coisa, e entre vós não haja cismas; sede perfeitos no mesmo sentimento e no mesmo parecer". 1 Cor., I, 10.

Como não se acha tal distinção na Bíblia, assim nem vestígios dela se observam em toda a antiguidade cristã. Nas grandes discussões religiosas nunca se debateu se um dogma era ou não fundamental no sentido protestante.13


Percorram-se as atas dos concílio, leiam-se os escritos dos santos Padres, revolvam-se todos os monumentos da Igreja primitiva, nunca se ouvirá a voz de um herege ou cismático que se defenda com pretextar que sua negação não atinge um dogma fundamental. Foi mister que viesse JURIEU, no século XVII, a ensinar-nos esta distinção capital no cristianismo e destarte presumir salvar na Babel protestante a "harmonia fundamental".

Não se encontra semelhante distinção na Bíblia, não encontra na história do cristianismo primitivo. Não se encontra porque não se podia encontrar.

Nada mais contrário à natureza da fé, mais irracional, mais injurioso a Jesus Cristo. Uma proposição ou é revelada ou não. Revelada, exige a nossa fé absoluta: negá-lo fora desprezar a autoridade de Deus. Não revelada, ou é erro, e crê-la como verdade divina é superstição e fanatismo, ou é verdade natural e admitimo-la não por fé senão por ciência.

Quem rejeita uma só verdade contida na revelação já não tem fé. A fé é o assentimento de nossa inteligência a uma verdade afiançada pela autoridade de Deus. Escolher dogmas é pôr acima da autoridade divina a própria razão, é crer em si, não em Deus. Concretizemos num exemplo: o calvinista, lendo a Bíblia. convence-se que Cristo é Deus; ao mesmo tempo, porém, não ignora que o sociniano, lendo a mesma Bíblia, chega à conclusão oposta. Em que se baseia a fé calvinista? Na sua opinião pessoal, no seu próprio juízo que lhe diz estar ele na verdade e o colega no erro. O protestante, pois, crê não na Bíblia mas em si, na própria razão individual que a interpreta, o que equivale a dizer que não crê absolutamente. Sua fé é um modo de ver, uma opinião humana,
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13. Dizemos no sentido protestante porque em outro sentido a distinção é admissível. A Unidade e Trindade de Deus, a Encarnação, Paixão e Morte de N. S. J. C. chamam-se mistérios principais ou dogmas fndamentais da nossa fé, não porque os outros se possam impunemente negar, senão porque constituem como o centro da doutrina cristã, em torno do qual gravitam todos os outros dogmas.




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essencialmente vacilante e mutável. O racionalismo, como já observou STRAUSS, é o paradeiro fatal do protestantismo.

Vede ainda a que incoerências arrasta a defesa de uma posição falsa. Tomai-me em dogma: a presença real de Cristo na Eucaristia. Admitiu-a LUTERO, admitem-na algumas seitas protestantes; rejeitou-a CALVINO, rejeitam-na algumas facções reformadas: logo não é dogma fundamental. Conculcar aos pés a hóstia consagrada ou curvar diante dela os joelhos em humilde abração serão atos indiferentes, igualmente agradáveis a Deus que não lesam a substância do cristianismo! Na metáfora de nosso gramático, são bemóis ou sustenidos insignificantes que, para os ouvidos duros do protestantismo, não desafinam na harmonia fundamental. Mas, protestante, que adoras Cristo na Eucaristia, se Cristo nela não está presente, já não és cristão, és idólatra. Protestantes, que pisas a hóstia consagrada, se Cristo nela está presente, como poderá agradar a Deus se és sacrílego abominável? Bagatelas, dirá o gramático teólogo, questões "de ordem secundária", "idiossincrasias do espírito humano na apreensão integral do cristianismo", p. 65. A que cegueira não leva a obstinação do partidarismo!

Vamos adiante. Há dogmas fundamentais e dogmas não fundamentais. E quem os discrimina? Que autoridade fará a separação delicada? Os indivíduos? Mas são falíveis e cada qual conserva a sua autonomia na interpretação das Escrituras.

As coletividades? Os sínodos, provinciais ou nacionais? Mas suas decisões não têm força obrigatória, porque nem eles são infalíveis nem podem em caso algum atentar contra a soberania do sentir individual. Nestes apuros, os teólogos patrocinadores da cerebrina distinção de JURIEU deram tratos à fantasia para formular um regra, um critério que lhes permitisse discernir os dogmas que se devem crer dos dogmas de credulidade livre. E para logo revelou-se a "harmonia fundamental". Aí vai, colhida à pressa, uma dezena de normas propostas.

São fundamentais todos os dogmas contidos na Escritura. - São fundamentais só os dogmas contidos expressa e explicitamente a Escritura. - São fundamentais os dogmas que a Escritura declara necessários à salvação. - São fundamentais os dogmas talmente essenciais ao cristianismo que, sem eles, a religião de Cristo cessaria de existir. - São fundamentais os dogmas que foram cridos, por todos e em todos os lugares. - São fundamentais os dogmas da Igreja primitiva. - LOCKE é mais explícito e menos




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exigente: são fundamentais a existência de um Deus remunerador, a fé no Cristo Messias e a suficiência da Escritura interpretada individualmente como regra de fé e de costumes. - São fundamentais, diz ainda outra regra, os dogmas em que concordam todos os cristãos.

Inútil determo-nos em fazer a crítica de cada uma destas normas. Entra logo pelos olhos a sua elasticidade, ambiguidade e incoerência. O livre exame exercido sobre cada uma delas abre a porta a todos os destemperos do capricho individual. Considerai, por exemplo, a última que é típica. Suponhamo-nos em face de 300 denominações que concordam em dez dogmas. Logo são fundamentais. Amanhã, uma das trezentas, no legítimo exercício dos seus direitos protestantes, rejeita um deles. Já os dogmas que reúnem o sufrágio universal descem a nove. O décimo desmerece de sua fundamentalidade para ocupar um lugar subalterno na multidão obscura dos dogmas secundários. Depois de amanhã, outra seita lembra-se de riscar do símbolo comum um dos nove. Mais outro fundamental apeado de sua dignidade. E assim, de dia para dia, o crivo do livre exame vai continuando a sua função de joeirar dogmas até reduzi-los a poeira impalpável. E tudo isto, em boa lógica protestante, é coerente, é justo, é incoercível.

Que fazer contra a realidade inegável? Que posição tomar contra estes enfants terribles do protestantismo, contra os unitários e socinianos, contra os da escola liberal que não poupam a Trindade de Deus e a divindade de Cristo? Para salvar a "harmonia fundamental", C. PEREIRA lança mão de um alvitre extremo: expulsa-os do protestantismo, fulmina-lhes a excomunhão, estigmatizando-os com o ferrete de hereges, p. 67. Hereges? Por que, severo gramático? Sois infalível? Que autoridade tendes para lançar anátemas contra irmãos que usam do mesmo direito do livre exame que tão estrenuamente vindicais para vós? Não; entre protestantes não pode haver hereges. Voto pela coerência do sínodo de Lausana (1857) que, não afinando na harmonia do intransigente pastor brasileiro, altamente protesta (o sínodo não renuncia a seus direitos hereditários) contra tais restrições arbitrárias. "Cristão, define ele, é todo aquele que apela para Cristo. Le crétien est celui que se réclame du Christ". 14
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14. AP. F. MARTIN, De l'avenir du protestantyisme et du catholicisme, Paris, 1869, p. 24.




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Se Cristo é Deus ou não, é ninharia sem importância. Assim, nos amplos bojos desta definição há lugar para o maometano que vê em Cristo um grande profeta e também para o racionalista ímpio que venera em Cristo o homem "qui ne será surpassé", "un principe inépuisable de ranaissances morales", aquele no qual "s'est condensé tout ce qu'il y a de bon et d'élevé dans notre nature".15 Como vê o nosso pastor, ainda assim triunfa a indestrutível harmonia fundamental. A essência Cristo está salva. O mais são nonadas, "idiossincrasias do espírito humano na apreensão integral do cristianismo".

O Sr. C. PEREIRA, lança a barra mais longe. Não satisfeito com tentar escurecer o fato evidente da discórdia protestante, forja uma filosofia para justificá-la teoricamente. A divisão, o dissídio, o desagregamento são guindados à altura de critério da vida e da verdade. "Variar é a lei da natureza e até a condição da vida e da harmonia. Só não varia o que é estagnado e morto", p. 64.

Ainda aqui tresvaria a lógica do ilustre polemista. Variar é a lei. A lei do erro, das opiniões humanas, das probabilidades movediças, sim. A lei da verdade, da ciência, da palavra de Deus, não. A verdade é una, eterna, imutável, sempre idêntica a si mesma no incessante ondear do erro. O primeiro homem que contou disse: dois e dois são quatro. Dois e dois são quatro, repetirá a última criança que fizer uma soma. A aritmética de hoje é a aritmética de PITÁGORAS e de ARQUIMEDES. A geometria do século XX é a geometria de EUCLIDES.

Haverá progresso, ampliação de conhecimentos, acréscimo de novas descobertas; negação das verdades adquiridas, contradição das certezas demonstradas, nunca. O que vale para a ciência humana é com maioria de razão indubitável quando se trata de revelação divina. "Veritas Domini manet in aeternum". Uma religião cujos fastos levam por título: "História das variações das igrejas protestantes" já confutada. 16
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15. RENAN, Fie de Jésus (18), Paris, 1833, ppo. 475, 467, 474.

16. c. pereira, naturalmente indigna-se contra a obra prima do bispo de Meaux. S´as cpmtrovérias sacramentárias, diz ele, "ofereceram a Bossuet o assunto para triunfos vazios.Não lhe adviesse esse tópico, por ele decantado em todos os tons, grande armazém de suasvariações e o bom do bispo ver-se-ia em lamentável embaraço", p. 68. Evidentemente o Sr. C. PEREIRA, não leu BOSSUET ou não no entendeu. GIBBON, protestante, mais escrupuloso, quis conhecer de visu a obra depreciada pelo nosso gramático; leu-a e declarou nestes termos a impressão dessa leitura: "Na História das variações, assalto tão vigoroso quão bem dirigido, o autor, combinando com muita felicidade o raciocínio com a narração, percorre os defeitos, os transvios, as incertezas e as contradições dos nossos primeiros reformadores, cujas variações, como ele habilmente sustenta, trazem o sigilo do erro enquanto a unidade nunca interrompida da Igreja católica é sinal e testemunha da verdade infalível... Li, aprovei, acreditei!. Memoirs of my life and weitings, nas miscellaneous works of E. Gibbon, London, 1837, p. 28, Quase um século depois de GIBBON, análoga é a impressão de outro protestante ilustre: "L'Histoire des variotions... est une oeuvre d'une singulière puissance au point de vue philosophique comme su point de vue historique. Je n'oublierai jamais l'impression que me fit il y a longtemps... la première lecture de ce livre. Je l'avais pris avec une curiosité méfiante et malveillante. Je m'attendais a y trouver un pamphlet suranné, plain d'erreurs et de préjugés ou la mauvaise foi s'enveloppait de rhétorique déclamatoire. Quelle ne fut ma surprise en y trouvant une oeuvre encore éclatante de vie et de jeunesse, de l'inérêt le plus attachant...; d'oú les violences, la déclamation, le dénigrement systématique sont également absents; où tous les faits sont accompagnés de leurs preuves; où Luther et Mélanchthon m'apparaisaient pour la premeère fois dans la complexité de leur caractère et de leur activité! J'etais irrité et subjugué en même temps". G. MONOD, Revue Historique, t. 49 (1892). p. 103. - Como se vê, o livro de BOSSUET não precisa do placet do gramático brasileiro para ter entrada na galeria das obras imortais. Monumento de bronze, arrosta triunfante o vendaval dos séculos e os gilvazes e rabiscos de transeuntes obscuros.





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Não rege, pois, a verdade nem é científico o princípio invocado pelo Sr. C. PEREIRA. Variedades na unidade é regra de estética. E ainda no campo da arte, o seu significado é bem diverso do que supõe o nosso gramático. Variedade importa então multiplicidade de elementos que conspiram na unidade harmônica do ideal estético; nunca, porém sucessão em coexistência de partes que se opõem em contraste dissonante e contraditório. Deus, beleza suma, é imutável por essência. Na variedade imóvel das Pessoas que subsistem na unidade de uma só natureza está o encanto sempre antigo e sempre novo da Formosura infinita.

A Igreja espelha, a seu modo, a eterna beldade de Deus. Todos os gênios do cristianismo desde AGOSTINHO até CHATEAUBRIAND, teólogos ou artistas, extasiaram-se na contemplação dos seus dogmas, tão variados, tão coerentes, tão harmoniosos na unidade indivisível de sua verdade imutável.

Fora da Igreja, o protestantismo só nos oferece a variedade de mil seitas rivais que põem e contrapõem, edificam e destroem, afirmam e negam, num caos de indizíveis contradições. É a variedade da incerteza, a incoerência da dúvida, a inconstância do erro. Negação do ideal religioso.

A distinção gasta de JURIEU e as afirmações inconsistentes de uma filosofia avariada foi o que de melhor soube repisar o Sr. C. PERIERA em defesa da harmonia fundamental do protestantismo. As outras razões que ainda alega são de tal quilate que chega o leitor a duvidar se lhe falam seriamente ou se o querem meter à bulha.

Aqui, depois de enumerar uma dúzia de confissões ou credos elaborados em pouco mais de um século pelas seitas protestantes de diversos países - confissões ou credos, que discordam em pontos tão fundamentais como o número e natureza dos sacramentos, o presença real de Cristo na Eucaristia, a jerarquia eclesiástica, o sacerdócio, etc., etc., - conclui com uma seriedade aruspicina: "toda essa atividade confessional do protestantismo, revela de modo incontestável a sua unidade dogmática, embora ásperas e tempestuosas controvérsias teológicas baldassem reiteradas tentativas de união formal", 67 17 - Será possível que doze confissões - e o autor não lhes esgotou o número - que se sucedem, se corrigem, se contradizem nas mesmas questões de fé, revelem unidade dogmática? Será possível que apesar desta "incontestável unidade dogmática" se baldassem reiteradas tentativas de união formal? Por que, em cada nação, formula cada seita um símbolo diverso, se comunga em unidade dogmática com as confissões elaboradas anteriormente? Sinceridade; aduzir as confissões protestantes como sinal de unidade dogmática é zombar do bom senso dos leitores.

Zombar do seu bom senso e fazer pouco caso de sua instrução. Depois de exaltar a "incontestável unidade dogmática" destes velhos formulários, por que não revelou também o Sr. C. PEREIRA aos seus fiéis que, hoje, todos estes monumentos simbólicos, feitura de mãos humanas, caíram para nunca mais surgirem? Quem insuflará um sopro de vida no cadáver da confissão de Augsburgo? Que protestante há que se julgue obrigado em consciência a seguir as arbitrariedades da exomologese de CALVINO ou de ZWINGLIO?

A supressão dos símbolos estava na lógica do protestantismo.19 A sua introdução, motivada em outras eras pelas exigências de certa unidade exterior, estava em irredutível antagonismo com o livre exame, alma de Reforma. Na luta inevitável venceu o princípio da autonomia individual. Hoje os formulários simbólicos não
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17. Quão diferente do nosso pastor julgava GRÓCIO as infinitas confissões que via pulularem sob os seus olhos: "Confeesiones factae sunt variis in locis variae atque inter se pugnantes et non modo quae factae erant partes non potuere unquam inter se coalescere, sed et novae quotidie exortae sunt particulae tot ut nemo sit qui earum possit inire numerum. Et ut fecunda est ista seges unoquoque sibi licere credendi quod alius ante usurpavit, credibile est novas, quotidies exstituras". H. GRÓCIO, Votum pro pace Ecclesiae, Opera theologica, Basileae, 1732, t. IV. P. 654. Este futuro que para nós já é passado confirmou as previsões do célebre jurista.

18. "L'Eglise de Genève n'a et ne doit avoir, comme réformée, aucune profession de foi précise et commune a tous ses membres. Si l'on voulait en avoir une en cela même on blesserait la liberté évangélique, on renocerait au principe même de la réfomation... Se ces églises et ces synodes... ont pretendu prescrire aux fidèles ce qu'ils devaient croire, alors par de telles déciosions ces assemblées n'ont prouvé autre chose sinon qu'elles ignoraient leur propre religion." J. J. ROUSSEAU, Lettres de la montagne, II lettre.





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passam de "farrapos de papel". Eis em que se resolveu a "unidade dogmática" tão assoalhada pelo pastor brasileiro.12




- Mas além são as ordens religiosas invocadas em símile justificador da Babel protestante. As agremiações "no seio do protestantismo têm o seu paralelo nas ordens monásticas ou religiões no seio do romanismo", p.69. Cá e lá, a diversidade não a unidade fundamental. - Santo Deus! Será concebível tanta ignorância ! As ordens religiosas, ilustre pastor, não diferem num só dogma. Todas recitam o mesmo símbolo, todas praticam o mesmo culto, todas obedecem à mesma autoridade do Sumo Pontífice. Diferem só no modo de exercer a própria atividade. Umas dão-se à contemplação, outras ao apostolado; estas consagram-se à instrução da juventude nas escolas, aquelas à cura dos enfermos nos hospitais. Não elaboram confissões, não joeiram dogmas, não interpretam a seu talante a Escritura. Onde o paralelismo? Onde a comparabilidade? - Como é penoso e humilhante estarmos a recordar num escrito polêmico contra um "estudo dogmático-histórico" estas noções elementares do catecismo da infância!

Por derradeiro, apela o nosso adversário para os congressos protestantes como testemunhos irrecusáveis da harmonia fundamental das mil e uma seitas evangélicas. "esta unidade moral e dogmática afirma-se frequentemente em convenções ou congressos ecumênicos", p.134. - Que candura! Que santa ingenuidade! Se o reunir-se em congressos fora sinal de consenso nas idéias e de concórdia nos afetos, há quanto tempo estaria resolvido o grande problema da pacificação internacional!

Quantas conferências entre estas nações que ainda ontem se entredevoravam nos campos de batalha e hoje se vêem divorciadas por interesses antagonistas e ódios irreconciliáveis! A verdade é que as seitas protestantes se reúnem como as nações; em demanda de uma paz cujas vantagens reconhecem, de uma unidade que almejam, mas da qual perderam o segredo. Nas assembleias protestantes só existe concórdia quando se debatem questões adiáforas, quando se propõem meios de difundir bíblias ou se alvitram estratégias para hostilizar a Igreja romana. Então sim, as seitas
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19. Ver em AUDIN, Histoire de Calvin, Paris, 1841, 6. II, pp. 106-115, como as diversas comunidades protestantes da Suiça e da Alemanha se emancipara sucessivamente da coação doutrinal das confissões simbólicas. - Em 1905, quando foi do congresso protestante de Berlim, o pastor RADE, diretor do Christleche Welt e teólogo liberal, atirou aos conservadores este cartel de desafio: "Citem-me os ortodoxos um só professor culto que, em nossos dias, siga, à letra, as confissões de fé e as Escrituras". Ninguém levantou a luva.




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divergentes cerram fileiras contra o inimigo de todas. Pobres protestantes! Pobres cristãos! Condenados a não terem por vínculo de unidade senão um ódio comum!

Mal, porém, sobre o tapete da discussão se põem questões dogmáticas, as divergências estalam com a incompressibilidade de facções irredutíveis. Há mais de trezentos anos que se congregam sínodos e conferência protestantes: ainda se não conseguiu até hoje formular um símbolo que obtivesse o sufrágio universal dos dissedentes.

Na Inglaterra reúnem se batistas, congregacionalistas, metodistas, presbiterianos e cristãos bíblicos; formulam um catecismo, publicado em Londres em 1899 e reunindo em 52 respostas a síntese das verdades em que concordavam as seitas deliberantes. Não eram passados poucos meses e já o formulário tinha sido rejeitado, por uns, como demasiadamente explícito e completo, por outros, como nimiamente breve e vago. E voltaram à independência do livre exame. Outra tentativa mais universal foi a da Aliança evangélica. Quatro grandes assembleias  entre outras menos importantes, reuniram-se em Londres, Berlim, Genebra e Paris para unificar os dissidentes. Cada conferência formulou a sua confissão. Eram nove os artigos assentados na primeira convenção de Londres (1846) que reunia 800 delegados de 50 denominações diversas. Genebra reduziu esta já leve bagagem dogmática a só 4 artigos. Em Paris baixaram a 3. A Trindade, o pecado original e a expiação já haviam sido riscados. O último dos concílios cancelou também a divindade de Cristo que Paris timidamente conservara. Eis a "unidade dogmática e moral" que se afirma nos congressos protestantes.


Não; é inútil multiplicar sofismas contra a evidência esmagadora da realidade. Em boa lógica, só uma via se abre ao Sr. C. PEREIRA para convencer os seus leitores da "harmonia fundamental", da "unidade moral e dogmática" dos seus correligionários. Formule o pastor brasileiro um símbolo de fé, discrime-lhe, um por um, os diferentes artigos, precise-lhes, sem ambiguidades  a significação de todos os termos e em seguida, documentos na mão, prove que todas as seitas protestantes o professam. Essa sim, na sua simplicidade, fora a única demonstração concludente. A qualquer outra, o leitor desenganado encolherá os ombros e, com um sorriso cético, dirá de si para si aquilo de Job "frustra aperit os suum et absque scientia verba multiplicat"Job, XXXV, 16.


Parece que o próprio Sr. C. PEREIRA depois de esgotar os recursos de sua sofística nesta empresa de Sísifo de convencesse enfim




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da inutilidade de tantos esforços. Ao cabo, deixa cair os braços num gesto de desalento e, após haver decantado em todas as claves a sua "harmonia fundamental", murmura resignado em tom de lá menor: "O grande problema da união cristã não pode ser resolvido por uma volta à uniformidade de crença e de organização externa",20 p. 72.

É só para lamentar que o ilustre pastor que "lê a Bíblia e só a Bíblia" se esquecesse de abrir o seu Novo Testamento. Aí encontraria nos lábios de Cristo a promessa infalível da unidade que haveria de distinguir a sua Igreja. "Pai Santo, guarda em teu nome aqueles que me deste para que sejam uma mesma coisa, como nós o somos (ut sint unum sicut et nos unum sumus)... E não rogo somente por eles, rogo também por aqueles que por meio de sua palavra hão de crer em mim para que sejam uma mesma coisa, assim como tu, Pai, o és em mim e eu em ti, a fim de que eles sejam em nós uma mesma coisa para que o mundo creia que tu me enviaste" Joan, 11, 20,21. Em S. Paulo acharia que os cristãos devem ser "um só corpo, um só espírito, um só batismo, uma só fé. Ephes., IV, 4-5. Em todo Evangelho veria que Cristo estabeleceu uma Igreja, uma só. Nunca nos fala de igrejas, mas de igreja: edificarei a minha igreja... quem não ouvir a igreja seja considerado como pagão e pecador. Math., XVI, 18, XVIII, 17. As parábolas trazem sempre ao espírito a idéia de unidade, de corpo social organizado sob o governo hierárquico de uma autoridade suprema. A Igreja é um reino, onde um só rei governa; é um rebanho, sob o cajado de um só pastor (unum ovile et unus pastor); é uma família dirigida pela autoridade paterna; é uma árvore formada, na multiplicidade de seus órgãos, por um só princípio vital. Quem não recebe a sua seiva, quem se separa de seu tronco é um ramo estéril destinado ao fogo. Aí está a unidade, caráter essencial da Igreja.

Nem podia ser de outra forma. A unidade é o sigilo inconfundível e inseparável da verdade. "Le caractère essentiel de la veritá, escreveu um protestante ilustre, et précisémente ce qui en fait le lien social para excellence, c'est l'unité. La verité est une; c'est porquoi les hommes qui l'ont reconnue et acceptée sont unis;
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20. Já o leitor terá observado o palmar da contradição. Como é possível a afirmada "unidade dogmática! onde é confessadamente impossível a "uniformidade de crença"? Porventura a lógica do livre exame outorga aos seus discípulos a franquia de fundir os contraditórios e de casar o sim e o não nos acordes da mesma harmonia fundamental?

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union que n'a rien d'accidentel ni d'arbtraire, car la vérité ne depend ni des accidents des choses ni de l'incertitude des hommes; rien de passager car la vérité est éternelle; rien de borné car la vérité est complète et infinie. Comme la vérité, l'unité será donc lecaractère essentiel de la société qui n'aura que la vérité pour objet, c'est-á-dire de la société spirituelle. Il n'y pas, il ne peut y avoir deux sociétés spirituelles; elle est de sa nature unique et universelle. Ainsi est née l'Eglise; de lá, cette unité qu'elle a proclamée comme son principe, cette universalité qui a été toujours son ambition".21

Inconscientemente, portanto, o pastor brasileiro fez a apologia da verdade católica. Aqui confessa que a uniformidade de crença é impossível no protestantismo. Em toda a sua obras declama contra a concentração crescente do romanismo. Com esta expressão, a sua pena, tresvairada pelo preconceito, deforma a admirável unidade da Igreja católica tanto mais esplendidamente visível em nossos dias quanto mais evidente é o esfacelo e a decomposição doutrinal dos dissidentes. Nela e só nela, a uniformidade de crença é um fato. O mesmo credo é recitado por quase quatrocentos milhões de fiéis espalhados em todas as nações, em todas as latitudes do globo. O camponês eleva a sua inteligência à altura do mesmo símbolo que extasiava o gênio de AGOSTINHO, de BOSSUET e de PASCAL. Os filhos do povo, humildes e ignorantes, bebem a verdade na mesma taça que os potentados da fortuna e da ciência. Um só é o pastor do imenso rebanho de Cristo: Pedro sempre vivo na pessoa de seus sucessores, Pedro a quem, antes de deixar a terra, disse o Salvador: "apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas'. Para as inteligências retas, para os corações sinceros não há possibilidade de equívocos: a Igreja católica é a Igreja de Cristo.
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21. GUIZOT, Histoire de la Civilisation en France (2), Paris 1846, I. p. 316.



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